quinta-feira, 25 de março de 2010

O dia em que os jacarés invadiram Nova York.

Deu no jornal: experiências genéticas produziram minúsculos jacarés que foram vendidos aos milhares em Nova York como brinquedo. Mas eram ferozes como seus ancestrais e os pais, receosos de que os filhos fossem mordidos, despejaram os jacarezinhos nos vasos sanitários e puxaram a descarga. Foi um erro fatal: centenas de jacarés sobreviveram e fizeram dos esgotos da cidade seu habitat. E lá, durante anos, se reproduziram. E cada geração – sabe-se lá os insondáveis mistérios da genética – aumentavam de tamanho, acabando por produzir espécies muito maiores que os crocodilos do Nilo. Quando as autoridades deram pela coisa era tarde. Pela saídas do metrô, pelas galerias de esgotos, pelo rio Hudson, milhões de jacarés gigantescos ganharam as ruas num ataque de surpresa e comeram a maior parte da população. Mais espantoso ainda: os jacarés assimilavam a personalidade daqueles que devoravam. De modo que a estrutura da cidade não se alterou muito, só que em vez de seres humanos eram jacarés que dominavam a cidade: serviços públicos, transporte, comunicação, tudo. A estátua da Liberdade foi substituída por um jacaré com um archote. Nem todos os habitantes foram comidos. Os jacarés que haviam comido os cientistas especializados em genética começaram a fazer experiências com suas cobaias humanas. Até que conseguiram reproduzir em laboratório homenzinhos com 20 centímetros de altura, que foram vendidos como brinquedos para os filhotes de jacarés. Mas os minúsculos seres não haviam perdido a ferocidade de seus ancestrais e começaram a hostilizar seus donos com lanças improvisadas. Os jacarés, com receio de que seus filhos se machucassem, pegaram os homenzinhos e os despejaram nos vasos sanitários. E puxaram a descarga. Foi um erro fatal para os jacarés.

Jaguar.

terça-feira, 16 de março de 2010

Déjeuner du matin.

Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler.

Il a allumé
Une cigarette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder.

Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur sa tête
Il a mis son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Et il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder.

Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré.

Jacques Prévert - 1949.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Pronominais.

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso, camarada
Me dá um cigarro.

Oswald de Andrade.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Quero.

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Carlos Drummond de Andrade.

As Sem - Razões do Amor.

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
E nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
E com amor não se paga.

Amor é dado de graça
É semeado no vento,
Na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
E a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
Bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
Não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
Feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
E da morte vencedor,
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A Vida Vivida.

Quem sou eu senão um grande sonho obscuro em face do Sonho, senão uma grande angústia
obscura em face da Angústia. Quem sou eu senão a imponderável árvore dentro da noite imóvel. E cujas presas remontam ao mais triste fundo da terra?

De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra, que se destrói à presença das fortes claridades, mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério e cuja forma é prodigiosa treva informe?

Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino. Rio que sou em busca do mar que me apavora, alma que sou clamando o desfalecimento, carne que sou no âmago inútil da prece?

O que é a mulher em mim senão o Túmulo. O branco marco da minha rota peregrina. Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte, mas em cujos braços somente tenho vida?

O que é o meu amor, ai de mim! senão a luz impossível, senão a estrela parada num oceano de melancolia. O que me diz ele senão que é vã toda a palavra. Que não repousa no seio trágico do abismo?

O que é o meu Amor? senão o meu desejo iluminado. O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo. O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes?

A quem respondo senão a ecos, a soluços, a lamentos. De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio, a quem falo senão a multidões de símbolos errantes cuja tragédia efêmera nenhum espírito imagina?

Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a Língua, da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo e do fundo do inferno delirantemente proclamá-los em Poesia que se derrame como sol ou como chuva?

O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo o que é ele em mim senão o meu desejo de encontrá-lo e o encontrando, o meu medo de não o reconhecer?

O que sou eu senão ele, o Deus em sofrimento e o temor imperceptível na voz portentosa do vento. O bater invisível de um coração no descampado...
O que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?

Rio de Janeiro, 1938.